Como a reestruturação da escrita literária infanto juvenil ocasionou um debate político
Certamente, um dos elementos mais marcantes do Brasil é a rica cultura existente em suas variáveis formas, sendo a literatura um aspecto tradicional de valor histórico capaz de atingir diferentes públicos e transmitir valores de maneira dinâmica e atraente. Como dizia o novelista Hugo von Hofmannsthal, ‘‘Nada está na realidade política de um país se não estiver primeiro na sua literatura’’.
Sendo assim, a questão do controle de discursos em livros infantis, que hora ou outra volta a gerar polêmica, voltou a ressurgir com o caso das obras do autor Monteiro Lobato. A bisneta do escritor, Cleo Monteiro Lobato, em uma nova adaptação do conto A Menina do Narizinho Arrebitado (1920), alterou trechos considerados de cunho pejorativo étnico em relação à personagem Tia Nastácia, antes descrita em diferentes histórias como “macaca de carvão” ou ''negra de estimação''.
Por ser uma forma de expressão antiga, resistente ao longo do tempo, acaba inegavelmente respaldando aspetos culturais de diferentes épocas ao mesmo tempo em que é propagada para gerações que não estão familiarizadas com as realidades de nossos antepassados, o que pode criar inquietude por parte de certos indivíduos.
Para o professor da Universidade Federal de Roraima e escritor Simão Farias, essa forma de arte reflete características importantes da sociedade: ‘‘Apesar de representar um universo ficcional, a literatura também possui alguma referência de fatos da realidade. Além de encantar, a literatura pode despertar para uma leitura de mundo através de seu caráter de denúncia social’’.
Farias descreve ter uma relação muito íntima com as escritas destinadas ao coletivo infantil, sendo algo de extremo apego e relevância ao longo de sua jornada acadêmica: ‘‘Minhas vivências como leitor de literatura infanto-juvenil me remetem à infância e adolescência, quando a literatura de Monteiro Lobato e sua adaptação para TV retroalimentavam uma vontade de se deixar levar pelo imaginário criado pela ficção. Como aluno da graduação em Letras, fiz pesquisa sobre os excluídos na literatura infanto-juvenil brasileira, o que estimulou meu interesse pelo mestrado a respeito da melhor narrativa de Lobato’’.
A didática roraimense
Durante uma visita ao Palácio Cultural Nené Macaggi, lugar de extremo valor para os lares roraimenses, nos deparamos com um espaço amplo e rico em cultura e educação. Ao visitarmos as duas áreas de estudo didático, tanto para os mais velhos quanto para os mais novos, percebemos diferenças na abordagem quanto à distribuição de livros e construção do ambiente.
Ao conversarmos com o bibliotecário Valter Amorim, percebemos a paixão que move o trabalho daqueles que cuidam de toda a literatura disponível para o público e o significado que esta tem para ele: ‘‘A leitura dá vida e poder aos que a procuram, dá conforto e estabilidade, dá confiança e liberdade, dá sentido às diversidades de mundo culturais que existe, a leitura é a alma e o coração da educação, a leitura seguindo a escrita é o sucessor de uma formação educacional comprometida com a evolução do receptor, é o encontro para amenizar a desigualdade. No ato de ler se menciona o aprender, o dividir, o divulgar, acolher, o alimentar, o decifrar, o ensinar, o multiplicar sonhos, o formar cidadãos com conceitos éticos e morais, a leitura é a vida dentro dos livros, é a possibilidade mais real de se conhecer o mundo e tudo que há nele em pouco tempo, a leitura é a caixinha da esperança para a humanidade’’, atesta.
Quando perguntamos se já houve algum conflito em relação a alguma temática dentro de alguma obra, ele nos conta sobre um livro que vez ou outra levanta reclamações de alguns pais. O material intitulado O Que Está Acontecendo Comigo? Conta, de maneira subjetiva e leve, alguns aspectos da puberdade, juntando o aprendizado com o lúdico. Quanto a esse aspecto, Valter explica: ‘‘Sempre tem algum livro de cunho infantil que tem outros tipos de palavras, em que os pais, quando eles estão lendo o livro, acabam indo para outro lado’’.
Acerca dos diferentes tipos de escrita que, apesar de se encaixarem na ala infantil, podem não ser de fácil entendimento para todas as crianças por isso, a solução encontrada foi dividir os livros por cores.
Ao longo da conversa, Valter sempre deixa claro o seu amor fiel à literatura e como esta não só é essencial para o desenvolvimento pessoal do indivíduo, como para a construção de saber. Para ele, muitas vezes a literatura é única forma em que é possível se conectar com certos aspectos da vida.
‘‘Trabalho como o seu desenvolvido (literatura), com instância de mostrar a importância que a leitura precisa e deve estabelecer no processo ensino –aprendizagem da criança, a colaboração do incentivo do ato de ler nas séries iniciais, através da família, da escola e do poder político, a importância de formar leitores para se criar uma sociedade progressista e convicta de seus direitos e deveres. O exercício da leitura contínua estabelece um elo de amor entre o leitor e o autor, entre a vida dos personagens e a magia que os leitores podem recriar suas histórias, dentro de possibilidade impossíveis no mundo real’’.
Origem de um meio de educação e diversão
A literatura infanto juvenil teve o seu surgimento em meados do século XVII, com o intuito educativo de orientar as crianças da época acerca dos malefícios que certas ações e lugares poderiam trazer a esses pequeninos. Essas histórias, que eram contadas entre diferentes indivíduos, estavam no centro de transformações sociais e mudanças que estavam ocorrendo no mundo das artes, o que elevavam o carácter moralista que a maioria dos contos trazia em seu final, principalmente em tom de advertência. Apesar de encaminharem para o público mais jovem e ingênuo do período, os contos originais antigos de autores como Giambattista Basile (autor do conto 'Cinderela') ou Charles Perrault (autor de Chapeuzinho Vermelho que também escreveu outra versão do conto Cinderela), traziam um teor mórbido e macabro como forma de enfatizar o perigo que seus castelos e carruagens de abóboras escondiam em seus contos, além de abordarem variadas problemáticas da sociedade sem poupar pontos violentos e cruéis do roteiro.
No Brasil, essa narrativa se originou a partir de traduções das obras portuguesas e se manteve ligada a um cunho pedagógico e moral, semelhante às ideias das fábulas, porém com uma linguagem mais acessível e chamativa aos pequeninos.
Ao decorrer do tempo, as obras antigas passaram a não refletir mais o pensamento moderno, principalmente na abordagem de assuntos considerados delicados no meio social, o que gerou uma série de modificações em conteúdos infantis a fim de amenizar o conteúdo, mas ainda sim manter a progressão do enredo, como nos clássicos anteriormente citados.
Porém, recentemente, o desejo de mudanças em materiais destinados à faixa etária mais jovem vem se intensificando em uma perspectiva diferente da outrora falada: uma visão mais incisiva na retirada de expressões e sentidos que só já não possuem mais finalidade na sociedade, como a prejudicam de determinada forma. Esse movimento não possui uma origem exata, mas teve uma presença significativa a partir de 2016 e se mantém presente até agora, principalmente quando há relação com autores como Monteiro Lobato. Ademais, situações em que há constantes tentativas de pessoas ligadas a instituições na busca da diminuição ao acesso a certos livros que violam suas crenças veem repercutindo e gerando debate sobre a ‘liberdade de expressão’.
Ainda, é importante lembrar como o surgimento das redes sociais não só constantemente revive essa polêmica, como a propaga para um maior número de sujeitos.
Diferentes visões
As inúmeras discussões sobre o quão abrangente a literatura deve ser diante de certos discursos, especialmente de autores considerados problemáticos pela mídia, levou a algumas editoras a alterar algumas falas, em especial aquelas que possuíam conotações preconceituosas ou carregadas de duplo sentido.
O literato Simão defende que a modificação de trechos de forma abrupta em obras antigas não é a solução adequada para as controversas encontradas nessas obras, porém, atesta que a estruturação antiga desses conteúdos não deve se manter a mesma, sendo necessária uma maior elaboração para trazer a conscientização do leitor.
‘‘Alguns livros de Monteiro Lobato foram criticados por conter alguns discursos racistas, mas o ideal não é censurá-los e sim considerar o contexto da época e a necessidade de notas de rodapé nos livros apontando os motivos racistas de determinados personagens. A censura não é boa para ninguém’’.
O também docente do curso de história da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Alfredo Ferreira de Souza, que apesar de não se especializar na área literária, possui uma relação de interesse com o tema, relacionando-o a seu campo de estudo: ‘‘Eu não sou especialista na área de literatura, a minha área de pesquisa é outra, mas a literatura também me traz uma importância na minha vida porque ela é um reflexo da sua época; ela vai demonstrar de fato como as pessoas criam o mundo; a maneira com que elas contemplavam o mundo’’
''A literatura é filha da sua época, ela vai refletir aquilo que em história nós chamamos de mentalidade social, essa rede simbólica da sociedade. Então a literatura é muito importante, eu considero como algo muito interessante e importante'', enfatiza Alfredo Ferreira
Ele relata que o ato de remodelar diferentes partes dos trabalhos desses autores antigos é uma atitude danosa ao contingente.
Além disso, o educador é veementemente crítico à medida, acrescentando que a real razão para que se haja o desejo de se modificar esses materiais, ademais da linha política desses indivíduos, é a necessidade de se fomentar ideologias que se propagam de forma exagerada e acabam deturpando reais valores de luta. ‘‘Você percebe que não há interesse em você estabelecer o respeito’’, afirma o pedagogo.
‘‘O politicamente correto não tem interesse nenhum nas pessoas, elas manipulam as pessoas para um objetivo maior, o autoritarismo. Então você aplicar o politicamente correto na literatura é um ato de destruição. Além de que, torna a vida mais chata’’.
Casos que geraram discussão
Como mencionado anteriormente, ao longo dos anos o número de ocorrências de modificações realizadas em produtos literários aumentou significativamente, além de vezes em que os livros eram retirados por completo de qualquer possível contato com o público. Seja por conter os chamados ‘‘conteúdos inadequados’’ ou por serem não qualitativos o suficiente para as crianças, diferentes conteúdos arriscam serem vítimas desse debate.
Em março de 2018 o livro Omo-Oba:Histórias de Princesas, da autora Kiusam de Oliveira, foi retirado de circulação na escola A Escola SESI Unidade Volta Redonda, no Rio de Janeiro, após a reclamação de pais insatisfeitos com o conteúdo da história e de grupos religiosos. O livro relata histórias de diferentes princesas africanas e demonstra aspectos culturais indígenas e afro-brasileiros. Posteriormente, a direção da instituição retrocedeu ao ocorrido e admitiu ter tomado uma atitude imponderada, graças as críticas recebidas na mídia.
Um episódio ocorrido no ano de 2020 em Rondônia chamou a atenção pela imprevisibilidade: a obra do autor Mário de Andrade, Macunaíma, foi uma das escritas consideradas improprias para os mais jovens pela Secretaria de Educação em Rondônia, com outros mais de 40 livros. O ato foi postergado posteriormente após a repercussão gerada.
Por fim, seja por cunho político, ideológico, ou educativo, as composições literárias são as primeiras a serem alvos de contradição por parte de diferentes realidades que buscam reafirmar as suas teses em cima de um cenário que muitas vezes é imaginário, porém se relaciona intrinsecamente com a vida de muitos. Afinal, este é detentor da capacidade de influenciar a opinião pública e alterar o modo com que a comunidade enxerga certos aspectos que a compõe.
Por Keissy Julienne, Kailane e Yasmin Tavares
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